PELO MALO

Cartaz do filme PELO MALO

Opinião

A gente sabe que um filme é abrangente quando senta para registrar as suas palavras-chave. Depois de conversar com a diretora venezuelana Mariana Rondón, que está no Brasil para o lançamento de seu segundo longa, esse exercício ficou ainda mais complexo.

Pelo Malo, premiado no Festival de San Sebastián, fala da infância permeada pela violência, pelos centros urbanos deturpados e carentes, pela miséria educacional e familiar, pelas relações conturbadas, pelo contexto social desigual. No entanto, essa é parte óbvia, quando o que Mariana quis mesmo é que essa realidade social deturpada entrasse na seara pessoal. “Queria que o contexto social em que as pessoas não se reconhecem, em que nós não encontramos nosso lugar, pudesse ser visto também no contexto pessoal de cada um”, explica ela, por telefone, entre tantos compromissos em São Paulo. “A sociedade aqui é uma metáfora de nós mesmos, da dificuldade que temos de nos tolerarmos, de nutrir uma relação familiar sem violência”, completa.

De fato, aqui entram outras palavras-chave para contextualizar esse viés intimista que Mariana tanto ressalta no filme. Identidade, sexualidade, infância, relacionamento, descoberta, e mais violência. Perguntei como surgiu a ideia desse personagem mirim (aliás, espetacular), que tem um cabelo encaracolado e quer alisá-lo a qualquer preço. “O cabelo foi só uma desculpa para falar da busca pela identidade, da sexualidade, do encontro conosco mesmo, para poder encontrar o outro, reconhecer o outro e trabalhar as diferenças”, diz ela. Com a ideia de relacionar o espaço interno de cada um de nós com o mundo exterior, trata de como cada um se vê no espelho, como se projeta na sociedade e que lugar ocupa nela. Claro, estamos falando de racismo, tolerância, aceitação das diferenças, disputas de poder. Mais palavras-chave para a lista.

Claro que não dá para desvincular o cenário de pobreza com a Venezuela de hoje. “É um país com uma política polarizada, onde extremos radicais não se conhecem e só geram violência”, explica Mariana. Assim como a pequena sociedade dentro de nossas casas, dentro da casa de Junior, esse menino com cabelo ruim, que quer tirar uma foto com roupa de cantor e cabelo liso, que não sabe nomear seus sentimentos, mas sente-se diferente e rejeitado por isso. Rejeitado por sua mãe, que não encontra seu lugar profissional e pessoal, que não se vê mãe. Aliás, que desprendimento da atriz Samantha Castillo, num trabalho forte e genuíno.

Gosto muito dos filmes que trazem o mundo adulto sob o olhar da criança. Publiquei aqui uma lista de filmes “Quando a criança é que dá o tom“. Para Mariana, a criança é um trampolim para o olhar adulto do futuro. Por isso a analogia é tão rica. Recentemente, Pelo Malo foi exibido no Festival Ciranda de Filmes em São Paulo, que discutiu a infância e a aprendizagem. Tem tudo a ver. O cinema é uma ferramenta e tanto para isso. E aqui, temos ainda mais palavras-chave. Filme profundo é assim, vai abrindo frentes para refletir e transbordar a emoção.

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