CAIRO 678 – 678

Cartaz do filme CAIRO 678 – 678

Opinião

*Este filme foi publicado no Cine Garimpo em março de 2012 e agora reeditado para se encaixar no novo formato.

Esta semana foi premiado com o Oscar de melhor filme estrangeiro o ótimo A Separação, que não só traz à tona a realidade da cultura islâmica no Irã como um todo nas suas relações familiares e sociais, como ressalta a condição da mulher muçulmana nos países em que o Alcorão é interpretado de forma extremamente machista, gerando distorções sociais e humanitárias absurdas. Cairo 678 é mais um filme sobre o tema que, como já tenho dito em outras matérias sobre produções sobre a cultura árabe, ajuda a jogar um facho de luz sobre essa realidade incompreensível, porém absolutamente atual e real no mundo islâmico, presente diariamente na mídia graças à Primavera Árabe, que sacudiu o norte da África desde o ano passado, política, econômica e culturalmente.

Só que Cairo 678 trata de um assunto específico, incômodo (principalmente para mulheres) e de difícil solução. Mulheres são molestadas sexualmente à luz do dia, nas ruas, nos transporte público lotados (daí o título Cairo 678, uma referência ao número da linha de ônibus). Não fazem denúncias porque obviamente sentem vergonha e seriam renegadas pelo marido, pai, irmãos. E para completar, teriam de submeter sua queixa ao poder policial, sempre sob tutela masculina. Como é possível denunciar algo a alguém que entende que o crime é legítimo? Sem recursos, nem suporte jurídico em países teocráticos, as mulheres egípcias são vítimas impotentes nas mãos e na cultura dessa sociedade.

O interessante do filme, baseado em histórias reais, é que as vidas dessas três mulheres de classe sociais distintas se cruzam por algo que transcende o poder econômico, social, educacional. Cruzam-se porque tratam da honra, do respeito, do livre arbítrio, da liberdade de ir, vir e pensar. Aqui fica claro que mesmo a classe egípcia abastada, instruída, viajada e profissionalmente bem posicionada também não consegue se livrar dessa educação da obediência e subserviência a que são submetidas as mulheres.

Seba, uma empresária rica e bonita, casada com um médico muito bem posicionado, é violentada durante a comemoração da vitória da seleção egípcia de futebol, evento essencialmente masculino; Fayza é uma dona de casa submissa e simples, que se incomoda com a abordagem física do marido e sofre todos os dias com o assédio sexual nos ônibus lotados da cidade; Nelly é de classe média, batalhadora e contestadora, que sonha em ser comediante como o noivo. Mas ambos têm que trabalhar em setores “de prestígio” para serem aceitos nas respectivas famílias. Ela também sofre abuso sexual e consegue criar coragem para depor, denunciar e processar o criminoso. É nesse contexto que elas se conhecem, com Seba liderando um grupo de mulheres vítimas da violência sexual, que precisam aprender perder o medo, ter coragem e se defender dos abusos e da falta de respeito.

Cairo 678 algumas vezes parece documental – e acredito ser de fato. São histórias reais muito fortes, que vão na direção completamente oposta à maneira milenar de pensar do povo egípcio muçulmano. Agora que a revolução contra os líderes corruptos e déspotas iniciou algumas transformações, mesmo que mínimas, no campo religioso, social e comportamental nos países islâmicos do norte da África, a manifestação de cineastas como Mohamed Diab são valiosíssimas. É para dizer para o mundo que desse jeito não dá. Que não se trata de tirar o véu, se despir das tradições e preceitos religiosos. Também não se trata de um simples “grito feminista”, mas sim de encontrar uma maneira de viver com dignidade e respeito. Básico, não?

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