anatomia de uma queda – anatomie d’une chute

Cartaz do filme anatomia de uma queda – anatomie d’une chute

Opinião

Especial para 47ª Mostra SP

Quando não é possível descobrir quem cometeu o crime, o caminho é pensar por que ele aconteceu. Isso não sou eu quem está falando. É uma reflexão dita no final do julgamento de Sandra, principal suspeita de um caso de homicídio. Quem morre é seu marido. O local é a casa onde moram nos Alpes franceses, com o filho Daniel, de 11 anos, que é deficiente visual. Não há testemunhas e Sandra vai a julgamento. Tudo baseado na falta de prova, na falta de visão clara, na falta de flashbacks no tribunal que expliquem o que aconteceu realmente.

ANATOMIA DE UMA QUEDA nasce da pergunta que Justine Triet se fez: o que seria da minha vida se minhas questões privadas se tornassem públicas e fossem julgadas pelos outros? Algo que também poderia ser chamado de “autopsia de um casal”, como disse a mediadora da entrevista coletiva em Cannes — festival que deu ao filme a Palma de Ouro. À primeira vista, se refere à posição do corpo de Samuel, que é encontrado ao lado da edícula que tem marcas de sangue, já sem vida, deitado na neve. Mas se trata muito mais de entender como as pessoas enxergam Sandra e sua relação com o marido, do que de descobrir a verdade. O julgamento vai construir narrativas com base no que se espera de uma mulher, mãe, esposa e profissional. Sandra é Sandra Hüller (também em O Homem Ideal, Toni Erdmann) que incorpora esta personagem com toda a sua ambiguidade, escrita especialmente pra ela.

Sandra e Samuel são escritores e ele também tem prenome do ator, Samuel Theis. Ela publica um livro, dá entrevista no começo do filme a uma jornalista; ele, enfrenta uma crise criativa, não consegue dar cabo ao seu próprio livro e se ocupa reformando a casa. A anatomia de uma queda, olhada mais a fundo, é a tentativa de desconstruir a relação do casal, traçando o perfil psicológico dos personagens e de seus comportamentos. A escrita que proporciona vivenciar a ficção, confunde-se com a realidade. Escritores inventam personagens e se mesclam com eles no decorrer da vida. Os tribunais também inventam. “Há um obsessão pela verdade, mas o que se vê nos tribunais é a construção de duas narrativas ficcionais que fazem a realidade ficar ainda maior”, diz Triet.

Assim são Sandra e Samuel — e sua realidade-barra-ficção vai se descortinando na nossa frente. Mas é Daniel que ocupa o espaço vazio; não vê mas enxerga longe,  não vê mas sente e pressente. A presença é sentida pelo espectador como algo misterioso, de difícil leitura. É ele que preenche a falta que eu mencionei no começo deste texto; é ele quem decide o culpa ou inocência da mãe. Sempre com o cachorro por perto. Talvez o único que realmente tudo vê e tudo sabe.

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