FOME
Opinião
Sábia quem me disse que Fome não seria um filme fácil. Que era preciso assistir descansada, em tela grande. Tinha razão. É preciso. O que eu não sabia era que este filme em branco e preto, com jeito de documentário, árduo e cruel na lida humana, seria um deleite das palavras.
Um velho homem velho – não só de idade, mas de espírito – abandona a vida acadêmica para viver na rua. Não se vitimizar, apenas escolhe, liberta-se. Não aceita ser tratado como coitado. Alfineta quem tem pena; peita quem o desafia. Mas canta, em francês, com a estudante que vai entrevistá-lo. Cheio de fome de liberdade, critica quem vê a fome como algo só físico. A sociedade rasa. A hipocrisia fantasiada de misericórdia.
Enquanto ele perambula pelo centro de São Paulo, lembrei-me de Estamira, a senhora que foi protagonista do documentário homônimo (2004), de Marcos Prado. É como se o velho homem velho e cansado também existisse. Aliás, ele é a personificação dessa grande população sem identidade. Estamira, catadora de lixo e poeta, disse que “às vezes é só resto [o que ela encontra no lixão]; às vezes vem também descuido”. É desse discutido que o velho homem quer se libertar. Do descuido próprio da natureza humana – consigo mesma e com o outro. No fim, ater-se à miséria nos dois filmes é estreitar muito a visão; proponho pensar na bonança e na riqueza do verbo, das palavras, da poesia. E da inteligência, por que não?
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