CASA GRANDE

Cartaz do filme CASA GRANDE

Opinião

Quanto mais eu penso sobre Casa Grande, mais o filme faz sentido. E mais percebo como tecer esse teia de relações foi complexa. Relacionamentos já são complexos por definição – e pela experiência de cada um de nós. O que o diretor Fellipe Barbosa fez aqui foi construir o universo da classe brasileira mais abastada, entrar nos meandros da sua casa, das relações entre a família e seus empregados, da intimidade e dos tabus sociais, para depois desconstruí-lo a partir de duas descobertas: a falência financeira e os questionamentos da adolescência.

Quanto mais eu penso sobre Casa Grande, mais questão surgem e mais me intriga essa relação que existe da servidão, da diferença de classes e da classificação descarada que rotula pessoas pelo seu status social. Eu sei, é assim em vários lugares. É do ser humano. Mas está na nossa sociedade de maneira muito preconceituosa. Em Casa Grande, Jean é um adolescente que questiona a condição financeira do pai (que faz investimentos ruins, fica sem emprego, mas não admite baixar a crista), mantém uma relação honesta e afetiva com os empregados da casa (motorista, cozinheira e arrumadeira) e desperta para a sua sexualidade quando conhece uma garota diferente dele, de outra cor, de outra classe social. Tudo isso junto acaba vindo à tona como uma tormenta e indica ser um divisor de águas na vida desse personagem tão cheio de dúvidas.

Só mesmo recorrendo ao diretor carioca para levantar alguns assuntos e entender como essa teia foi montada. Casa Grande dá muito pano pra manga. Rende conversa em casa, é profundo e não se esgota em uma única sessão. Fellipe Barbosa deu sua contribuição valiosa, comentando algumas das minhas indagações na entrevista abaixo. Quanto mais penso sobre o filme, mais vejo o reflexo da nossa sociedade nas entranhas dessa grande casa grande.

Cine Garimpo – Gosto do recorte feito da sociedade brasileira em Casa Grande: a classe abastada é mais distante, mascarada e resistente à mudanças; os empregados são afetivos, são mais espontâneos, adaptam-se com mais facilidade à nova realidade. Como você vê isso? Isso é exclusivo da nossa sociedade acostumada com a servidão de uns a favor dos outros?

Fellipe Barbosa – Tem um certo romantismo nessa leitura de que os afetos reais estão entre os empregados ou na favela. Talvez eu seja um romântico. Mas creio que o dinheiro em excesso acaba sufocando os afetos, e que a felicidade não tem nada a ver com a riqueza, muito pelo contrário. Isso não é exclusivo do Brasil, senti muito isso viajando pela África também. O que é particular do Brasil é essa cordialidade alienada, onde os patrões são extremamente próximos dos empregados, os tratando como parte da família, e ao mesmo tempo completamente ignorantes da sua realidade, o que não torna o afeto menos real. Essa contradição é muito brasileira, e é o motivo do pranto de Jean ao reencontrar Severino na favela: a vergonha da própria ignorância, sua culpa burguesa. Nos últimos 12 anos no Brasil houve uma tomada de consciência dos empregados sobre o lugar que ocupam na casa grande, acompanhada pela consciência de seus direitos. A Pec das domésticas de 2012 foi uma evidência desse despertar, que é irreversível e resistirá à qualquer crise.

CG – Tenho um interesse particular no comportamento dos adolescentes, porque meus dois filhos estão passando por essa fase agora. O filme junta o questionamento natural da adolescência com questões familiares impossíveis de serem respondidas ou solucionadas. Com isso, senti que os conflitos ficam ainda mais nebulosos: lidar com o preconceito dos pais, com a diferença de classes, com o distanciamento afetivo entre pais e filhos, com a pressão da sociedade com as escolhas profissionais. O filme foi estruturado na figura do Jean como alicerce para todos os conflitos ou pensou-se na crise familiar como um todo e os personagens foram sendo delineados à medida em que a trama foi se desenrolando?

FB – Eu pensei a trama ao redor de Jean, sem dúvida. O filme conta a estória desse adolescente diante da encruzilhada do vestibular, que vai tornando-se mais presente e atento à medida que a família vai a falência. Como a família esconde a crise do filho a fim de protegê-lo, o filme precisava ter acesso aos outros personagens da casa para entender o que está sendo escondido de Jean. Ou seja, para ter ironia dramática, o filme precisava saber mais do que Jean. Assim, o ponto de vista na casa é da casa: podemos estar com qualquer personagem, mesmo que sem o Jean. Mas só saímos de casa com o Jean. Assim, o filme é uma espécie de comédia de costumes no interior da casa e um romance de formação no trajeto entre casa e colégio, pois é no ônibus que Jean conhece Luiza.

CG – Costumo assistir às cabines de imprensa sabendo muito pouco sobre o filme. Não me aprofundo, não leio resenhas, nem releases das assessorias. Assim, tento ser mais isenta e mais fiel aos meus sentimentos e sensações durante a sessão, inclusive para escrever meu comentário depois. Tudo isso pra dizer que quando fui assistir a Casa Grande, não conhecia o enredo. Mas o título já me remeteu à Casa Grande & Senzala, ao preconceito, à diferença de classes, à sociedade estratificada, ao racismo, à valorização excessiva do poder econômico. Como surgiu esse nome? Alguma relação explícita à obra de Gilberto Freyre ou só uma citação?

FB – Esse título surgiu nos laboratórios de Sundance, onde trabalhei o roteiro em 2008. Antes o filme de chamava “Cotas”, e Sundance insistiu que eu mudasse. Intuitivamente sugeri “Casa Grande”, e eles gostaram. Meu desafio a partir daí foi encontrar uma imagem que estivesse à altura do título. E assim surgiu a abertura do filme, que é uma descrição minuciosa dessa casa que é de fato muito grande. No filme, o literal vem sempre antes do simbólico. Mas é inegável que existe uma relação com a obra de Freyre. Após mudar o título, fui percebendo que as cotas raciais deveriam ser mais um pano de fundo — mais uma ameaça à essa família rica — e a relação entre empregados e patrões deveria ficar em primeiro plano. E assim estruturei o filme em torno de três demissões.

CG – Gosto muito da escolha dos atores: Marcello Novaes e Suzana Pires estão ótimos no papel do casal falido, que está mais preocupado com o que os outros vão pensar, do que em começar a resolver os seus sérios problemas. Thales Cavalcanti é o grande alicerce do filme e faz o papel com muita força. Vi que é seu primeiro longa. Como ele foi descoberto e como foi a sua preparação para assumir esse trabalho?

Creio que Sônia (vivida por Suzana Pires, grande parceira minha) é uma personagem bem pragmática, disposta a encarar a realidade e resolver os problemas. Quando vem a crise, ela arregaça as mangas, engole o orgulho e começa a vender cosméticos para sustentar a família.

Quanto ao Jean, o descobri no Colégio de São Bento, onde se passa a ação, assim como todos os outros adolescentes do filme. Acreditava que a maneira mais justa de retratar esse ambiente tão específico do único colégio só para homens no Brasil, precisava trabalhar com meninos de lá. Busquei o grupo ideal ao invés do Jean ideal, e nesse grupo apareceu o Thales. Era uma turma muito carismática e curiosa, e vários deles eram músicos que inclusive compuseram as músicas que eles tocam no filme. O Thales emprestou uma característica dele muito importante para o personagem: uma ingenuidade e sinceridade à flor da pele, que torna sua jornada de amadurecimento e tomada de consciência mais dilatada e dramática.

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