ESTAMIRA
Opinião
“Às vezes é só resto; às vezes vem também descuido.”
“Sabia que tudo que é imaginável é, existe e tem?”
Estamira, trabalhoda do aterro sanitário Jardim Gramacho/RJ
Não é todo dia que se acha um personagem como Estamira. Aliás, dois. Porque o lixão Jardim Gramacho já condensa uma história de vida inesgotável, já é um personagem por si só. O que o diretor Marcos Prado (também na produção de Tropa de Elite 2 – O Inimigo Agora é Outro, Última Parada 174, e na direção de Paraísos Artificiais) faz é deixar que essas duas figuras contem a sua trajetória: o lixão, com imagens que prescindem de palavras, sozinhas estão repletas de significado sobre a nossa sociedade de consumo, a cultura do desperdício, do desprezo humano e material, do trabalho subumano; Estamira, com palavras e gestos eloquentes e incisivos, mente perturbada e lúcida, prosa poética e delirante, trabalho digno e indigno.
O discurso de Estamira, essa senhora de 63 anos, que trabalha há 20 no aterro sanitário de Jardim Gramacho, o mesmo aterro retratado por Vik Muniz em seu documentário Lixo Extraordinário, é forte. Até por isso acho que o diretor optou por não narrar o documentário. Claro, não precisa. Ela mesma pergunta, ela mesma responde. Ela mesma questiona Deus e o amaldiçoa. Ela mesma analisa a sociedade, critica seus ex-maridos e conta como foi educar seus filhos passando fome no lixão e deixar a terceira filha para outro criar. Ela mesma se diz orgulhosa do seu trabalho, com que pode ter uma casa e um canto para descansar. Ela mesma procura comida no lixo e diz que receita vai preparar, ela manda e desmanda, faz prosa e poesia, filosofa com sua experiência de vida e se perde em seus pensamentos, numa mente que a esquizofrenia já não deixa operar normalmente. Ela mesma faz perguntas aos filhos e netos, ela mesma manda que se calem. Estamira é um retrato forte, triste, real de uma sociedade definitivamente desigual, de descarte das coisas e pessoas; as imagens do lixo voando no vento são avassaladoras e falam por si só.
O documentário Estamira recebeu mais de 29 prêmios mundo afora e é, realmente, um documento humano e sociológico imponente. Estamira diz que não há inocentes, há espertos ao contrário. Interessante a sua noção de justiça, de culpa, de honestidade. É com pérolas como essa que Estamira vive o lixão dos excluídos, dos estigmatizados, dos negros, mestiços, pobres, sem educação formal da sociedade brasileira. Na sua plenitude das imagens granuladas em preto e branco. São as mais bonitas e mais simbólicas.
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