BONITINHA, MAS ORDINÁRIA
Opinião
O que eu mais gosto no texto de Nelson Rodrigues é a sua atualidade. Mesmo pensando que escreveu Bonitinha, Mas Ordinária em 1962, portanto no pós-guerra, é perfeitamente possível encaixar sua tragédia carioca no Brasil de hoje. E isso não é pouca coisa. Traz a malandragem, o esfolado e o hipócrita, a classe média arrogante e o povo recalcado, o sexo reprimido e escancarado, a moral religiosa e social destorcida, degradada, a venda do corpo e da alma. A vida como ela é, nua e crua. O luxo no lixo; o lixo no luxo.
Transportando uma realidade dos anos 60 para os dias de hoje, claro que algumas situações parecem inverossímeis. Pensar que um pai rico e prepotente é capaz de obrigar a filha a se casar com um de seus funcionários pobretões, só para não ficar falada na sociedade e recuperar a sua honra, parece absurdo. Literalmente pode até ser, mas o buraco de Nelson Rodrigues é mais embaixo.
À primeira vista, Maria Cecília (Letícia Colin) é estuprada por cinco caras negros em um baile funk na favela. Desonrada, seu pai (Gracindo Júnior) obriga Edgar, um operário de sua construtora (João Miguel, também em Xingu, À Beira do Caminho, Gonzaga, De Pai Pra Filho, Estômago) a se casar com ela, em troca de um cheque de R$ 5 milhões. Parece praxe, já fez isso com a filha mais velha com seu funcionário Peixoto. Compra pessoas, dilui a moral, a ética e o caráter.
Acontece que Edgar é apaixonado por Ritinha (Leandra Leal, também em Estamos Juntos), moça que rala para por dinheiro dentro de casa, para educar as irmãs, sabe lá Deus como. Entre o amor e o dinheiro, a felicidade utópica e a tentação diabólica, a miséria orgulhosa e o triunfo a qualquer preço, Edgar sofre, representa a réstia de ética que ainda pode existir.
Em meio a orgias, estupros, escambo dos bons costumes, a bonitinha e ordinária Maria Cecília é peça-chave. Não sei bem se ela convence com sua pseudo-ingenuidade, mas a sua figura infantilizada por vezes me fez querer trocá-la por uma atriz com mais força. Aqui é uma figura mais novelesca e dentro dos moldes, talvez um pouco engessada para essa trama dissumulada.
A força que têm Edgar e Peixoto não só contrasta, como lidera a tragédia carioca, a tragédia familiar. Sim, porque a família é o centro, o desejo de consumo e a fonte de podridão. Conforme diz Peixoto, “toda a família tem um momento em que começa a apodrecer”, filosofa. “Pode ser a família mais decente, mais digna do mundo. E lá, um dia, aparece um tio pederasta, uma irmã lésbica, um pai ladrão, um cunhado louco. Tudo ao mesmo tempo.”
Pois é, este é Nelson Rodrigues que não dá ponto sem nó. Se a adaptação é novelesca, comportada demais, encare isso como um recorte, uma releitura. E um convite para ler a obra original. De qualquer maneira, Bonitinha, Mas Ordinária tem ritmo bom, temática espetacular e pura tragédia da vida humana. Vale seu ingresso.
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