DE LUGAR NENHUM
Opinião
Uma cápsula do tempo, especificamente desses últimos 10 anos, em que o mundo vive neste estado esquizofrénico. Assim Miguel Gonçalves Mendes define seu projeto Sentido da Vida, que inclui o bonito documentário EM LUGAR NENHUM, filme que acompanha a trajetória de Valter Hugo Mãe durante a escrita do seu libro A Desumanização. Digo inclui, porque há outros documentários no projeto. É um tipo de mosaico. “Tem inspiração em Magnólia, do Paul Thomas Anderson, em que os personagens se cruzam”, diz ele na entrevista ao Cine Garimpo na 49ª Mostra SP. Bela inspiração, diga-se de passagem. É um dos melhores mosaicos de personagens já feito. O diretor português esteve em São Paulo para a estreia mundial do documentário na programação da Mostra, cidade onde morou durante 7 anos. Também por isso, traz a pauliceia em peso durante o filme, numa grande homenagem.
Logo na largada, Miguel já lanças as perguntas que nortearam a feitura do projeto Sentido da Vida — que inclui oito personagens individuais em nove longas-metragens prontos, sendo este o primeiro a ser lançado. Diante de tanta esquizofrenia, o que nos faz querer estar vivos, lutar pelo que acreditamos? “O filme procura dar pistas sobre isso e para responder achei necessário escolher personagens reais de áreas diversas, como a ciência, a política, a justiça, que é uma forma de definir a humanidade”, explica. “Na ciência, por exemplo, um astronauta atesta a insignificância do ser humano diante do universo; na literatura, a escolha óbvia foi Valter Hugo Mãe” — que também esteve presente na Mostra e nesta entrevista. “O projeto joga luz na história do mundo e no fato de sermos a soma das partes.”
Durante os anos em que Valter Hugo percorreu a Islândia, o Brasil, Macau, Portugal e Colômbia, Miguel, também diretor do lindo documetário sobre José Saramago, José e Pilar, o acompanhou num registro intimista e livre. Digo livre, porque observar o processo criativo do escritor é algo desprovido de teorias e munido de observações, presenças, experiências. O espectador é conduzido junto na história da menina islandesa que perde a irmã gêmea e vai refletir, sempre na sua prosa poética, sobre a solidão, o luto e a identidade.
Como sempre, temas abertos e universais na obras do escritor, que foi responsável pela arte visual da Mostra e participou da estreia mundial de O Filho de Mil Homens, adaptação de seu romance para o cinema, filme também selecionado neste festival. Temáticas que parecem ser fruto da sua postura diante das coisas da vida. “Eu vivo um pouco ao contrário do que acontece com o fanatismo pela dentificação identitária extrema”, comenta. “Acho que enriquecemos se nos mantivermos livres de sabermos exatamente quem somos, ou seja, é bom saber o suficiente, mas é bom estar disponível para sermos algo de surpreendente, para nos surpreendermos com nossas capacidades, oportunidades e imaginação.” Rótulos delimitam e Valter Hugo desata todos eles. No documentário, nos deixando à vontade viajar literal e intelectualmente junto; na sua prosa, ela de repente te ilumina e te desarma. “O próprio título do filme do Miguel, essa coisa de não ser de lugar nenhum, é exatamente isso: significa que vou ser uma mistura de todos os lugares e que eu vou colher tudo que possa aproveitar, inclusive aquilo que eu ainda não sei.”

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