AINDA ESTOU AQUI
Opinião
“Assim como em Central do Brasil, a jornada de um personagem se encontra com a jornada do Brasil; é isso que me interessa no cinema.” Com essa declaração, o diretor brasileiro Walter Salles diz a que veio com seu filme AINDA ESTOU AQUI, que concorre ao Leão de Ouro em Veneza. Veio contar a história de uma família que lhe é pessoalmente querida, mas veio também — ou principalmente — conectar presente e passado, elaborar sentimentos em linguagem cinematográfica, deixar a arte dar o recado e ecoar.
E ecoa. AINDA ESTOU AQUI é baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, que também está em Veneza para o lançamento mundial do filme. “Quando minha mãe começou a mostrar sinais de Alzheimer, descobri que ela era o coração da família e que eu precisava contar a sua história.” O que ele faz no livro, Walter Salles transporta pra tela com uma elegância digna de quem presta uma homenagem. Mas sem carregar no drama. Sem excessos. Pelo contrário: tem tudo ali, considerando tanto o espectador estrangeiro, que é apresentado aos personagens e é capaz de ser transportado pro momento do filme, quanto o espectador brasileiro, que revisita o momento da ditadura sim, claro, mas entra em contato intimamente com a harmonia familiar de Marcelo. Ele, suas quatro irmãs, Rubens (Selton Mello) e Eunice moravam no Rio em 1971. Um dia, Rubens é preso pela ditadura, desaparece e seu atestado de óbito só será entregue 25 anos depois. Não teve corpo. Diante da viuvez repentina e trágica, a dona de casa Eunice arregaça as mangas e vai trabalhar. Pra sustentar a família e pra sobreviver emocionalmente. Advogada de sucesso, inclusive da causa indígena, remodela a estrutura familiar apesar dos pesares.
Ou melhor, por causa deles. Eunice é Fernanda Torres e, já mais velha, sua mãe, a Montenegro. No livro (que li no caminho pra Veneza), Marcelo deixa claro que Eunice não se sentia vítima. Decidiu que não permitiria que o sistema perverso abalasse sua alegria de viver. Pelo menos, não publicamente. Fernanda consegue ser esta personagem, numa atuação impecável. Uma personagem que mostra sua casa interna espelhada com a casa física — a do Rio, mostrando lindamente a ambientação do Leblon nos anos 1970; em São Paulo, 25 anos depois, quando tudo já é diferente. (Como as casas dos personagens nos contam tanto!) Já o Rubens de Selton Mello nos deixa num determinado momento do filme, porque essa é a história da família. “Minha missão era preencher a tela com leveza e alegria”, diz Selton. “Meu personagem deixa a marca dele e sei que ajudei a Fernanda quando eu saio de cena”. Ajuda. A conexão do personagem Rubens com o público acontece naturalmente e, instintivamente, acompanhar a falta dele no filme nos conecta ainda mais com Eunice e filhos, que vão viver o vazio deixado pelo desaparecimento.
AINDA ESTOU AQUI ainda ecoa aqui em Veneza. Superbem recebido pelos jornalistas, é um filme que traz brasilidade na trilha sonora que não é óbvia, na direção de arte que é elegante, na montagem que tem ritmo e conduz o olhar e os sentimentos do espectador pra universalidade da história dos Paiva, num exemplar lindo de morrer do nosso cinema.
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